Irmã Dulce dos Pobres: O anjo bom da Bahia
Há quase um século, no dia 26 de maio
de 1914, em Salvador, na Bahia, Deus fez nascer a sua filha Maria Rita de Sousa
Brito Lopes Pontes, que ficaria mais conhecida como Irmã Dulce. A humilde
religiosa constitui para os crentes e não crentes um exemplo de vida notável. Tanto
sua história como a de tantas outras personalidades brasileiras são merecedoras
de serem mais conhecidas e contadas, mormente por nós brasileiros.
A fé popular do povo baiano descreve
Irmã Dulce como o anjo bom da Bahia. Há um simbolismo
neotestamentário muito pertinente, ligado à imagem do anjo. A palavra grega Aggelos significa o mensageiro. Quer
dizer, Deus fala por meio do anjo, que é expressão da sua proximidade. Ora, que
mensagem divina a modesta religiosa trouxe para os seus convivas e se herdou
para nossos dias?
Deus viu, escutou, conheceu e desceu
para salvar o seu povo no Egito (cf. Ex 3, 7ss). Como aconteceu com o povo de
Israel, que experimentou a sensibilidade da mão divina em seu auxílio, não é
estranho que o rosto amoroso de Deus próximo, encarnado na história, continue a
manifestar sua afabilidade. O agir amoroso de Deus foi experimentado pelo povo
baiano como a expressão de um Deus efetivamente próximo, por meio das poucas
palavras, somado aos ricos gestos de ternura e compaixão de Irmã Dulce, o anjo
bom do século XX.
Sua vida revelou o amor concretizado
(não platônico!) por um coração humilde, próprio de quem tendeu a ajudar os
mais pobres colocando debaixo dos holofotes as necessidades – material, social,
intelectual e humana – dos carentes. Irmã Dulce, a mãe dos pobres, precisamente
viveu em conformidade com o Evangelho. Devemos ser evangelhos vivos, dizia ela
com quem convivia. A religiosa sustentou toda a sua caminhada numa espiritualidade
verdadeiramente evangélica. Oração e ação resumiam sua jornada diária.
O verso “todas as vezes que fizestes
isso a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes”
(Mt 25, 40) ganhou sentido profundo à Maria Rita, aos treze anos, quando ela
tomou a resolução de acompanhar sua tia Madaleninha nas visitas que esta fazia
aos pobres. Maria Rita além de atenta aos conselhos da tia levou a cabo o
serviço de caridade. Seu amor aos mais necessitados alargou-se cada vez mais.
Num certo dia, transformou o vão da escada de sua casa em um depósito de
objetos e alimentos, e a porta se tornou muito conhecida e frequentada pelos
pobres dos arredores.
Desde a infância e, mais
especificamente, na adolescência, a filha do bem sucedido Cirurgião Dentista e
Professor Universitário Dr. Augusto, rezava pedindo que Santo Antônio, seu
santo de devoção, lhe indicasse seu futuro: deveria ou não deveria seguir a
vida religiosa? Com 13 anos, em 1927, manifestou pela primeira vez o interesse
pela vida religiosa. Porém, por ser jovem demais, foi recusada pelo Convento de
Santa Clara do Desterro. Longe de qualquer atitude de aversão, num espírito
verdadeiramente acolhedor, ela humildemente compreendeu a decisão das irmãs
como expressão da vontade de Deus.
Foi nesse contexto que, atendendo ao
conselho de seu pai, a jovem de 15 anos, em 1929, matriculou-se na Escola
Normal da Bahia (equivalente ao Ensino Médio de hoje). Na época este curso
tinha o objetivo de formar professores para atuarem no magistério de ensino
primário. Em 1932, formou-se professora.
Em 1933, fez a profissão de Terceira
Franciscana, recebendo o nome de Irmã Lúcia. Neste mesmo ano, no dia 09 de
fevereiro ela ingressou na Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada
Conceição da Mãe de Deus, no Convento de Nossa Senhora do Carmo, em São
Cristóvão, Sergipe. No mês de agosto de 1933 ela recebeu o hábito. Em homenagem
a mãe, adotou o nome de Irmã Dulce.
Proferiu os votos simples temporários
de noviciado em agosto de 1934. No mês seguinte, foi enviada à sua terra natal,
Salvador, onde trabalhou na abertura do Hospital Espanhol, em companhia das
Irmãs Tabita e Capertana, exercendo as funções de enfermeira, sacristã,
responsável pelo raio X e porteira durante o turno da noite, sendo a encarregada
pela limpeza.
Impulsionada pelo Espírito Santo a religiosa
iniciou a assistência à comunidade carente, sobretudo nos Alagados, conjunto de
palafitas que se consolidara na parte interna do bairro de Itapagipe, além de
começar a atender os operários que eram numerosos naquele bairro, criando um
posto médico. Por esta época a imprensa começou a chamá-la de Anjo dos
Alagados.
O que parecia ser apenas o começo de
uma longa caminhada de apostolado tomou, por assim dizer, outro rumo. A
necessidade de reforçar o quadro do Colégio Santa Bernadete, pertencente à sua
Congregação, localizado no Largo da Madragoa, com freiras formadas, fez com que
Irmã Dulce, depois de apenas seis meses no Hospital Espanhol, fosse
transferida. Em fevereiro de 1935, passou a lecionar Geografia e História para
os cursos primário e ginasial. No entanto, o seu desejo pelo serviço aos mais
desvalidos era maior que dar aulas. Até mesmo Irmã Fausta, diretora do Colégio,
percebendo a situação pediu que a superiora tomasse alguma providência. “Irmã
Dulce estava presente na sala de aula com o corpo, mas a sua mente está muito
longe. Provavelmente ela pensa nos jovens que está do lado de fora, em algum
enfermo necessitado, e em como ajudá-los, o que levar para eles, onde
achá-los...”, expressava a diretora à superiora provincial. A fim de ajudar
Irmã Dulce a caminhar por uma estrada mais adequada à sua vocação, a provincial
lhe deu pessoalmente, a autorização para poder se dedicar totalmente à missão
fora do colégio.
Tomada de alegria por poder se dedicar
mais intensamente ao trabalho apostólico, Irmã Dulce tornou-se uma presença
viva e eficiente entre os pobres, vivendo com e como eles, em pé de igualdade.
No dia 1 de
novembro de 1936, Irmã Dulce fundou com os operários
Ramiro S. Mendonça, Nicanor Santana e Jorge Machado, a União Operária São
Francisco, primeira organização operária católica da Bahia. Em 1937, a União
Operária São Francisco se transformou no Círculo Operário da Bahia (COB). Esta
instituição assumiu compromissos sérios no tocante à assistência social e
formação profissional de operários e suas famílias. Entre os anos de 1937 a
1940, ajudou a fundar os cinemas Plataforma, São Caetano, cuja renda contribuía
para a manutenção do COB. Uma das tarefas cotidianas de Irmã Dulce era sair
pela cidade para pedir esmola para seus pobres. Certa vez, ao entrar numa loja,
pediu: “O senhor pode me dar alguma coisa para os meus pobres?”, e estendeu a
mão. Como resposta, o homem lhe deu uma cusparada. Irmã Dulce, com seu sorriso
angelical, não se perturbou; pelo contrário, ela respondeu-lhe: “Meu senhor,
isso é para mim... Agora, dê alguma coisa para os meus pobres.”.
A esta altura, a
dedicação da religiosa às questões sociais era cada vez maior, com uma
mentalidade prática e muito pouco teórica, livre de qualquer tendência
político-partidária e ideológica. Eis uma de suas declarações emblemáticas:
“Miséria é falta de amor entre os homens. Deus não gosta dos insensíveis. O
problema é estrutural, pois as pessoas, individualmente, ajudam, como fizeram
até hoje comigo. Eu não entro na área política, não tenho tempo para me ocupar
com as implicações partidárias. O meu partido é a pobreza.”
No ano de 1939, por necessidade,
para abrigar doentes que recolhia nas suas incursões pelas ruas de Salvador,
Irmã Dulce invadiu cinco casas abandonadas na região conhecida como Ilha dos
Ratos. Ela acabou sendo expulsa do local e peregrinou de um canto paro outro
durante uma década. Instalava os doentes em vários lugares diferentes, até
transformar em um pequeno albergue o galinheiro do Convento Santo Antônio, das
Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição. Em frente desse galinheiro-albergue,
um barracão servia de casa para os meninos de rua acolhidos por Irmã Dulce. Na
verdade, neste local nascia o primeiro núcleo do conjunto hospitalar que ganhou
depois o nome de Albergue Santo Antônio e que, totalmente transformado em 1960,
passou a ser o Hospital Santo Antônio. Com todo esse trabalho, Irmã Dulce ainda
encontrou tempo para estudar. Em 1941 concluiu o curso de Farmácia.
Em 26 de maio de 1959, foi fundada a
Associação Obras Sociais Irmã Dulce. Para uma visão panorâmica do que é hoje a
herança deixa por Irmã Dulce, citamos somente algumas cifras. As Obras Sociais
Irmã Dulce (OSID) são consideradas hoje
pelo Ministério da Saúde o maior complexo de atendimento totalmente gratuito em
saúde do Brasil e é responsável pelo maior volume de atendimentos em toda a
estrutura do setor na Bahia. As obras contam com 1.237 leitos. Os voluntários
são 200. Os colaboradores, mais de 3.000. 2,77% é o índice de infecção do
Hospital. Dado altamente positivo, conforme Organização Mundial de Saúde.
Anualmente são realizados mais de quatro milhões de atendimentos. Anualmente
são efetuadas: mais de 500.000 mil consultas gerais de ambulatório; cerca de
9.500 intervenções cirúrgicas; aproximadamente 20.000 intervenções de
ambulatório em pessoas com deficiência; mais de 140.000 consultas de
ambulatório (ginecologia); cerca de 50.000 consultas de ambulatório
(geriatria); cerca de 300.000 consultas de ambulatório (fisioterapia); cerca de
760.000 exames de laboratório; aproximadamente 80.000 exames de bioimagem.
Não bastam as
manifestações de bons sentimentos e ideias para torna-se um verdadeiro cristão.
Basta observar o testemunho de fé e caridade de Irmã Dulce. “A caridade não
pode ter as mãos amarradas”, repetia ela. Em meios aos desafios e problemas
emergentes da cultura pós-moderna, infelizmente, perdeu-se o real sentido da
categoria o próximo, quase
desapareceu, olha-se exclusivamente para o horizonte do eu. O resultado esta à vista: egoísmo, subjetivismo, fé intimista,
até mesmo negação de Deus ou, na pior das hipóteses, o impulso desordenado do
ser humano de poder ser igual a Deus (cf. Gn 3, 5). Daqui brota um desafio
fundamental para nós: não deixar-nos conduzir pela mentalidade estéril de uma
cultura dominante; pelo contrário, iluminados pelo ensinamento singular deixado
pela Irmã Dulce, cooperemos com a sua obra, que é fruto do amor de Deus.
Colaborar com a sua obra não é outra
coisa senão colaborar com a instauração do projeto de Deus. Estimular o amor é,
sem medo de errar, o melhor e único caminho para superar os mais variados e
complexos entraves que impedem a efetivação do plano de Deus, no seio da
contemporaneidade. E é exatamente nesse Ano da Fé na esteira do Vaticano II,
que reconhecemos com mais vigor a mensagem divina - testemunho de amor gratuito
e universal de Irmã Dulce - como sinal da presença de um Deus Amor. (cf. 1Jo 4,
16). Avulta hoje o desafio de assumir a mensagem vivenciada pela religiosa
baiana, como interpelação de Deus à nossa existência, passando a firmar um
compromisso de tornar crível o Evangelho.
Isso,
por sua vez, pede um coração aberto à humildade da conversão. “Se alguém
disser: ‘amo a Deus’, mas odeia seu irmão, é mentiroso; pois quem não ama seu
irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê.” (1 Jo 4, 20). Cabe, a
cada um de nós, um olhar totalmente desvinculado de preconceitos pelo próximo,
amando-o ilimitadamente.
O anjo bom da Bahia, a mãe dos desamparados,
proclamava convicta: “Se fosse preciso, começaria tudo outra vez, do mesmo
jeito, andando pelo mesmo caminho de dificuldades, pois a fé, que nunca me
abandona, me daria forças para ir sempre em frente.” Sua fé concretizada pelo
amor (cf. Gl 5, 6) a Deus e aos mais necessitados deixaram rastros que marcaram
as pessoas e sacudiram suas consciências, impulsionando cada uma delas a
construir um mundo diferente, isto é, mais amor e menos egoísmo.
Em novembro de 1990, Irmã Dulce foi
internada com problemas respiratórios. No ano seguinte, em outubro, recebeu no
seu leito de enferma a visita do Papa João Paulo II. Na saída, João Paulo II
comentou com o então cardeal primaz Dom Lucas Moreiro Neves: “Este é o
sofrimento do inocente. Igual àquele de Jesus.” Irmã Dulce viveu 16 meses presa
a um leito de dor, sorridente e tranquila, num quarto devidamente equipado,
pois ela necessitava de oxigênio para poder respirar. No dia 13 de março de
1992, faleceu com 77 anos, no Convento Santo Antônio.
Irmã Dulce, adequou seu dia a dia ao
Evangelho, honrou o Cristianismo. A religiosa foi beatificada aos 22 de maio de
2011, tendo o dia 13 de agosto como data
oficial de celebração de sua festa litúrgica. A
celebração de beatificação reuniu mais de 70 mil pessoas no Parque de
Exposições de Salvador. À Igreja da
Imaculada Conceição da Mãe de Deus, onde está enterrado o corpo da
Bem-Aventurada, em Salvador, acorrem muitos fieis e peregrinos, que vêm para
agradecer e pedir à intercessão da “Santa Dulce da Bahia”, como a chamava
carinhosamente o escritor Jorge Amado.
O convite a seguir seus passos é universal. Arrancar a erva
daninha das injustiças, da falta de partilha aparenta ser impossível, porém,
caso haja uma verdadeira conversão (metánoia),
isto é, mudança de mentalidade, de vida e de atitudes, por parte de cada um,
talvez um jardim de honestidade, de lisura e amor poderá florescer. Que a
Bem-Aventurada Dulce dos Pobres, interceda por nós.
Referências:
PASSARELLI, Gaetano. Irmã
Dulce: O anjo bom da Bahia. 3. ed. Tradução de Regina Cony. São Paulo:
Paulinas, 2012.
GIRARD, Marc. Os
símbolos na Bíblia: ensaio de teologia bíblica enraizada na experiência
humana universal. Tradução de Benôni Lemos. São Paulo: Paulus, 1997.
Excelente resumo da obra de Gaetano Passarelli: www.arautos.org.br/especial/26357/O-anjo-Bom-do-Brasil.html
Site das Obras Sociais Irmã Dulce: www.irmadulce.org.br
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