28 fevereiro 2013

Irmã Dulce dos Pobres

Neste mês de fevereiro o seminarista Ismael Weiduschath escreveu a respeito da Beata Dulce dos Pobres


Irmã Dulce dos Pobres: O anjo bom da Bahia



Há quase um século, no dia 26 de maio de 1914, em Salvador, na Bahia, Deus fez nascer a sua filha Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes, que ficaria mais conhecida como Irmã Dulce. A humilde religiosa constitui para os crentes e não crentes um exemplo de vida notável. Tanto sua história como a de tantas outras personalidades brasileiras são merecedoras de serem mais conhecidas e contadas, mormente por nós brasileiros.
A fé popular do povo baiano descreve Irmã Dulce como o anjo bom da Bahia. Há um simbolismo neotestamentário muito pertinente, ligado à imagem do anjo. A palavra grega Aggelos significa o mensageiro. Quer dizer, Deus fala por meio do anjo, que é expressão da sua proximidade. Ora, que mensagem divina a modesta religiosa trouxe para os seus convivas e se herdou para nossos dias?
Deus viu, escutou, conheceu e desceu para salvar o seu povo no Egito (cf. Ex 3, 7ss). Como aconteceu com o povo de Israel, que experimentou a sensibilidade da mão divina em seu auxílio, não é estranho que o rosto amoroso de Deus próximo, encarnado na história, continue a manifestar sua afabilidade. O agir amoroso de Deus foi experimentado pelo povo baiano como a expressão de um Deus efetivamente próximo, por meio das poucas palavras, somado aos ricos gestos de ternura e compaixão de Irmã Dulce, o anjo bom do século XX.
Sua vida revelou o amor concretizado (não platônico!) por um coração humilde, próprio de quem tendeu a ajudar os mais pobres colocando debaixo dos holofotes as necessidades – material, social, intelectual e humana – dos carentes. Irmã Dulce, a mãe dos pobres, precisamente viveu em conformidade com o Evangelho. Devemos ser evangelhos vivos, dizia ela com quem convivia. A religiosa sustentou toda a sua caminhada numa espiritualidade verdadeiramente evangélica. Oração e ação resumiam sua jornada diária.  
O verso “todas as vezes que fizestes isso a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes” (Mt 25, 40) ganhou sentido profundo à Maria Rita, aos treze anos, quando ela tomou a resolução de acompanhar sua tia Madaleninha nas visitas que esta fazia aos pobres. Maria Rita além de atenta aos conselhos da tia levou a cabo o serviço de caridade. Seu amor aos mais necessitados alargou-se cada vez mais. Num certo dia, transformou o vão da escada de sua casa em um depósito de objetos e alimentos, e a porta se tornou muito conhecida e frequentada pelos pobres dos arredores.
Desde a infância e, mais especificamente, na adolescência, a filha do bem sucedido Cirurgião Dentista e Professor Universitário Dr. Augusto, rezava pedindo que Santo Antônio, seu santo de devoção, lhe indicasse seu futuro: deveria ou não deveria seguir a vida religiosa? Com 13 anos, em 1927, manifestou pela primeira vez o interesse pela vida religiosa. Porém, por ser jovem demais, foi recusada pelo Convento de Santa Clara do Desterro. Longe de qualquer atitude de aversão, num espírito verdadeiramente acolhedor, ela humildemente compreendeu a decisão das irmãs como expressão da vontade de Deus.
Foi nesse contexto que, atendendo ao conselho de seu pai, a jovem de 15 anos, em 1929, matriculou-se na Escola Normal da Bahia (equivalente ao Ensino Médio de hoje). Na época este curso tinha o objetivo de formar professores para atuarem no magistério de ensino primário. Em 1932, formou-se professora.
Em 1933, fez a profissão de Terceira Franciscana, recebendo o nome de Irmã Lúcia. Neste mesmo ano, no dia 09 de fevereiro ela ingressou na Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, no Convento de Nossa Senhora do Carmo, em São Cristóvão, Sergipe. No mês de agosto de 1933 ela recebeu o hábito. Em homenagem a mãe, adotou o nome de Irmã Dulce.
Proferiu os votos simples temporários de noviciado em agosto de 1934. No mês seguinte, foi enviada à sua terra natal, Salvador, onde trabalhou na abertura do Hospital Espanhol, em companhia das Irmãs Tabita e Capertana, exercendo as funções de enfermeira, sacristã, responsável pelo raio X e porteira durante o turno da noite, sendo a encarregada pela limpeza.
Impulsionada pelo Espírito Santo a religiosa iniciou a assistência à comunidade carente, sobretudo nos Alagados, conjunto de palafitas que se consolidara na parte interna do bairro de Itapagipe, além de começar a atender os operários que eram numerosos naquele bairro, criando um posto médico. Por esta época a imprensa começou a chamá-la de Anjo dos Alagados.
O que parecia ser apenas o começo de uma longa caminhada de apostolado tomou, por assim dizer, outro rumo. A necessidade de reforçar o quadro do Colégio Santa Bernadete, pertencente à sua Congregação, localizado no Largo da Madragoa, com freiras formadas, fez com que Irmã Dulce, depois de apenas seis meses no Hospital Espanhol, fosse transferida. Em fevereiro de 1935, passou a lecionar Geografia e História para os cursos primário e ginasial. No entanto, o seu desejo pelo serviço aos mais desvalidos era maior que dar aulas. Até mesmo Irmã Fausta, diretora do Colégio, percebendo a situação pediu que a superiora tomasse alguma providência. “Irmã Dulce estava presente na sala de aula com o corpo, mas a sua mente está muito longe. Provavelmente ela pensa nos jovens que está do lado de fora, em algum enfermo necessitado, e em como ajudá-los, o que levar para eles, onde achá-los...”, expressava a diretora à superiora provincial. A fim de ajudar Irmã Dulce a caminhar por uma estrada mais adequada à sua vocação, a provincial lhe deu pessoalmente, a autorização para poder se dedicar totalmente à missão fora do colégio.
Tomada de alegria por poder se dedicar mais intensamente ao trabalho apostólico, Irmã Dulce tornou-se uma presença viva e eficiente entre os pobres, vivendo com e como eles, em pé de igualdade.
No dia 1 de novembro de 1936, Irmã Dulce fundou com os operários Ramiro S. Mendonça, Nicanor Santana e Jorge Machado, a União Operária São Francisco, primeira organização operária católica da Bahia. Em 1937, a União Operária São Francisco se transformou no Círculo Operário da Bahia (COB). Esta instituição assumiu compromissos sérios no tocante à assistência social e formação profissional de operários e suas famílias. Entre os anos de 1937 a 1940, ajudou a fundar os cinemas Plataforma, São Caetano, cuja renda contribuía para a manutenção do COB. Uma das tarefas cotidianas de Irmã Dulce era sair pela cidade para pedir esmola para seus pobres. Certa vez, ao entrar numa loja, pediu: “O senhor pode me dar alguma coisa para os meus pobres?”, e estendeu a mão. Como resposta, o homem lhe deu uma cusparada. Irmã Dulce, com seu sorriso angelical, não se perturbou; pelo contrário, ela respondeu-lhe: “Meu senhor, isso é para mim... Agora, dê alguma coisa para os meus pobres.”.
A esta altura, a dedicação da religiosa às questões sociais era cada vez maior, com uma mentalidade prática e muito pouco teórica, livre de qualquer tendência político-partidária e ideológica. Eis uma de suas declarações emblemáticas: “Miséria é falta de amor entre os homens. Deus não gosta dos insensíveis. O problema é estrutural, pois as pessoas, individualmente, ajudam, como fizeram até hoje comigo. Eu não entro na área política, não tenho tempo para me ocupar com as implicações partidárias. O meu partido é a pobreza.”
No ano de 1939, por necessidade, para abrigar doentes que recolhia nas suas incursões pelas ruas de Salvador, Irmã Dulce invadiu cinco casas abandonadas na região conhecida como Ilha dos Ratos. Ela acabou sendo expulsa do local e peregrinou de um canto paro outro durante uma década. Instalava os doentes em vários lugares diferentes, até transformar em um pequeno albergue o galinheiro do Convento Santo Antônio, das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição. Em frente desse galinheiro-albergue, um barracão servia de casa para os meninos de rua acolhidos por Irmã Dulce. Na verdade, neste local nascia o primeiro núcleo do conjunto hospitalar que ganhou depois o nome de Albergue Santo Antônio e que, totalmente transformado em 1960, passou a ser o Hospital Santo Antônio. Com todo esse trabalho, Irmã Dulce ainda encontrou tempo para estudar. Em 1941 concluiu o curso de Farmácia.
Em 26 de maio de 1959, foi fundada a Associação Obras Sociais Irmã Dulce. Para uma visão panorâmica do que é hoje a herança deixa por Irmã Dulce, citamos somente algumas cifras. As Obras Sociais Irmã Dulce (OSID) são consideradas hoje pelo Ministério da Saúde o maior complexo de atendimento totalmente gratuito em saúde do Brasil e é responsável pelo maior volume de atendimentos em toda a estrutura do setor na Bahia. As obras contam com 1.237 leitos. Os voluntários são 200. Os colaboradores, mais de 3.000. 2,77% é o índice de infecção do Hospital. Dado altamente positivo, conforme Organização Mundial de Saúde. Anualmente são realizados mais de quatro milhões de atendimentos. Anualmente são efetuadas: mais de 500.000 mil consultas gerais de ambulatório; cerca de 9.500 intervenções cirúrgicas; aproximadamente 20.000 intervenções de ambulatório em pessoas com deficiência; mais de 140.000 consultas de ambulatório (ginecologia); cerca de 50.000 consultas de ambulatório (geriatria); cerca de 300.000 consultas de ambulatório (fisioterapia); cerca de 760.000 exames de laboratório; aproximadamente 80.000 exames de bioimagem.
Não bastam as manifestações de bons sentimentos e ideias para torna-se um verdadeiro cristão. Basta observar o testemunho de fé e caridade de Irmã Dulce. “A caridade não pode ter as mãos amarradas”, repetia ela. Em meios aos desafios e problemas emergentes da cultura pós-moderna, infelizmente, perdeu-se o real sentido da categoria o próximo, quase desapareceu, olha-se exclusivamente para o horizonte do eu. O resultado esta à vista: egoísmo, subjetivismo, fé intimista, até mesmo negação de Deus ou, na pior das hipóteses, o impulso desordenado do ser humano de poder ser igual a Deus (cf. Gn 3, 5). Daqui brota um desafio fundamental para nós: não deixar-nos conduzir pela mentalidade estéril de uma cultura dominante; pelo contrário, iluminados pelo ensinamento singular deixado pela Irmã Dulce, cooperemos com a sua obra, que é fruto do amor de Deus.
Colaborar com a sua obra não é outra coisa senão colaborar com a instauração do projeto de Deus. Estimular o amor é, sem medo de errar, o melhor e único caminho para superar os mais variados e complexos entraves que impedem a efetivação do plano de Deus, no seio da contemporaneidade. E é exatamente nesse Ano da Fé na esteira do Vaticano II, que reconhecemos com mais vigor a mensagem divina - testemunho de amor gratuito e universal de Irmã Dulce - como sinal da presença de um Deus Amor. (cf. 1Jo 4, 16). Avulta hoje o desafio de assumir a mensagem vivenciada pela religiosa baiana, como interpelação de Deus à nossa existência, passando a firmar um compromisso de tornar crível o Evangelho.
 Isso, por sua vez, pede um coração aberto à humildade da conversão. “Se alguém disser: ‘amo a Deus’, mas odeia seu irmão, é mentiroso; pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê.” (1 Jo 4, 20). Cabe, a cada um de nós, um olhar totalmente desvinculado de preconceitos pelo próximo, amando-o ilimitadamente.
O anjo bom da Bahia, a mãe dos desamparados, proclamava convicta: “Se fosse preciso, começaria tudo outra vez, do mesmo jeito, andando pelo mesmo caminho de dificuldades, pois a fé, que nunca me abandona, me daria forças para ir sempre em frente.” Sua fé concretizada pelo amor (cf. Gl 5, 6) a Deus e aos mais necessitados deixaram rastros que marcaram as pessoas e sacudiram suas consciências, impulsionando cada uma delas a construir um mundo diferente, isto é, mais amor e menos egoísmo.
Em novembro de 1990, Irmã Dulce foi internada com problemas respiratórios. No ano seguinte, em outubro, recebeu no seu leito de enferma a visita do Papa João Paulo II. Na saída, João Paulo II comentou com o então cardeal primaz Dom Lucas Moreiro Neves: “Este é o sofrimento do inocente. Igual àquele de Jesus.” Irmã Dulce viveu 16 meses presa a um leito de dor, sorridente e tranquila, num quarto devidamente equipado, pois ela necessitava de oxigênio para poder respirar. No dia 13 de março de 1992, faleceu com 77 anos, no Convento Santo Antônio.
Irmã Dulce, adequou seu dia a dia ao Evangelho, honrou o Cristianismo. A religiosa foi beatificada aos 22 de maio de 2011, tendo o dia 13 de agosto como data oficial de celebração de sua festa litúrgica. A celebração de beatificação reuniu mais de 70 mil pessoas no Parque de Exposições de Salvador. À Igreja da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, onde está enterrado o corpo da Bem-Aventurada, em Salvador, acorrem muitos fieis e peregrinos, que vêm para agradecer e pedir à intercessão da “Santa Dulce da Bahia”, como a chamava carinhosamente o escritor Jorge Amado.
O convite a seguir seus passos é universal. Arrancar a erva daninha das injustiças, da falta de partilha aparenta ser impossível, porém, caso haja uma verdadeira conversão (metánoia), isto é, mudança de mentalidade, de vida e de atitudes, por parte de cada um, talvez um jardim de honestidade, de lisura e amor poderá florescer. Que a Bem-Aventurada Dulce dos Pobres, interceda por nós.

Referências:

PASSARELLI, Gaetano. Irmã Dulce: O anjo bom da Bahia. 3. ed. Tradução de Regina Cony. São Paulo: Paulinas, 2012.

GIRARD, Marc. Os símbolos na Bíblia: ensaio de teologia bíblica enraizada na experiência humana universal. Tradução de Benôni Lemos. São Paulo: Paulus, 1997.

Excelente resumo da obra de Gaetano Passarelli: www.arautos.org.br/especial/26357/O-anjo-Bom-do-Brasil.html

Site das Obras Sociais Irmã Dulce: www.irmadulce.org.br

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